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segunda-feira, 8 de julho de 2013

Nossos tons


Acordar. Escovar os dentes. Tomar café da manhã. Por roupa. Ver se há cartas. Cartas não tem, tem um bilhete jogado debaixo da porta. Desdobrei o bilhete que não estava dobrado milimetricamente correto. Sempre que recebo algum papel, procuro quem foi que mandou, mas este não dissera de quem era e não precisei de pista nenhuma para saber o remetente. Reconheceria aquela letra em qualquer lugar. Sentei no tapete encostada no sofá. Na frente, uma mesinha de centro e em cima dela, um carrinho de brinquedo. Para ser mais exata, um fusca bege que ganhei de alguém por ser um dia qualquer, que ganhei porque ele se lembrou de mim. 

E então, li o bilhete. As lembranças foram voltando devagarinho. Primeiro, foi de quando nos conhecemos. Um tirando o outro para ver quem seria o mais engraçado. Às vezes, ficávamos empatados. Em seguida, lembrei da primeira vez em que percebi o olhar diferente dele. Não foi aquele olhar de desafio que fazia na disputa de tiradas, foi uma coisa mais... desejo e um pouco de vergonha, definiria aquele olhar. Logo, tínhamos, praticamente, os mesmos amigos e saíamos para os mesmos bares. Lembrei de quando estávamos todos em uma mesa, bebendo, e chegou aquele guardanapo rabiscado. 

Que tal sairmos um dia
para treinarmos nossas tiradas?
(  ) SIM     (  ) NÃO

No dia, segurei para não morrer de rir. Talvez aquilo fosse uma piada e ele me zoaria para o resto da vida se eu respondesse um "sim". Mas percebi que ele não queria que alguém visse e decidi arriscar. Então, discretamente, peguei minha caneta dentro da bolsa, fiz um X no sim e escrevi meu número. Ele mandou de volta com um O.K. debaixo do número. Tenho o guardanapo guardado até hoje.

Depois disso, tudo mudou. As tiradas em frente aos amigos sempre tinha um pouco de nós dois, mas ninguém entendia. Ele me mostrou suas tradições e eu mostrei um pouco da minha liberdade. Fui conhecer a casa dele (bem diferente do meu apartamento, por sinal), mas não gostei daquelas paredes todas brancas. Fiz um "papel de parede" na parede da minha sala, é todo com recortes de revista. No meu quarto são fotografias coladas na parede e alguns desenhos. Vou colorir a vida desse cara, pensei.

Éramos melhores amigos agora, sabíamos tudo um do outro, ou achávamos que sabíamos. E aquela parede sem cor ainda me incomodava. Certo dia de tarde, cheguei na casa dele, sem avisar, com alguns quadros, imagens de vários tamanhos, tinta e pincéis. Ele ficou sem entender. Joguei um pincel para ele, arrumamos jornais para colocar no piso e começamos a pintar a parede da sala dele de verde com tom de cinza, até hoje não sei que cor é aquela. Mandei ele escolher algumas imagens, coloquei nos quadros e, depois que a parede secou, pregamos num círculo imperfeito. Discretamente, peguei uma caneta de escrever em CD e fiz um pequeno coração no cantinho da parede. Fico imaginando se ele já viu.

Sem muitos detalhes, sinto a falta dele. Sinto falta dos recadinhos que ele sempre me mandava por debaixo da porta do meu apartamento. Sinto falta da nossa amizade. Sinto falta até das tiradas. Entretanto, nosso namoro não deu certo, isso nós dois sabemos. Sua tradição prendeu minha liberdade, e por mais que eu gostasse mesmo dele, isso não me agradou nada. Minha vontade de mudar tudo que não tinha cor nem graça o assustava um pouco. E nem tudo que a gente não gosta, muda.

Acordo com seu sorriso em minha mente todos os dias.

Nossos tons não combinam mais. Nos falamos muito pouco, quase nada. Arranjamos outros amigos, outros bares e, talvez, outras cores. Os erros nos fazem aprender a diferenciar o que realmente é certo para nós, nos fazem mais maduros. Me pergunto se ele pintou a parede de outra cor, se colocou novas imagens nos quadros, se ele tira alguma outra pessoa. Nosso tempo juntos foi bom, aprendi a tomar café e comer ovo mexido. Aliás, aprendi a cozinhar algumas coisas.

Não queria escrever muito sobre ele para que não houvesse recaídas e eu fosse na porta da casa dele mandar um bilhetinho também. E mesmo sabendo que ele não vai ficar sabendo, eu acordo com aquela risada escandalosa dele todos os dias.

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"Quero desesperadamente ser uma sacudidora de palavras para o mundo."
Markus Zusak